O ano de 2021, por absurdo que possa parecer, foi especialmente profícuo para a literatura. Pensando bem, o isolamento compulsório a que estivemos todos submetidos há até pouco tempo, devido à pandemia de covid-19, decerto colaborou para a pletora de lançamentos literários no decorrer dos últimos 12 meses, o que acabou por salvar a saúde mental de muitos.
O filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1977) defendia que a natureza de divindade de um ente capaz de reger todos os outros residia exatamente no seu caráter de poder se imiscuir a tudo, afinal, todos os seres e mesmo todas as coisas têm seu lado luminoso, celestial, e sua porção sombria, que nunca é dada ao acaso, existe mesmo que obedecendo a uma determinação do próprio Altíssimo. Para muitos filósofos que se detêm sobre a obra de Spinoza, é dificílimo entender por que Deus, que tudo sabe, que vê todas as coisas que se passam desde o princípio dos tempos, inclusive as que ainda nem saíram do coração do homem, molda uma criatura à sua semelhança e imagem, mas uma criatura imperfeita, que peca, que rouba, que mata e, não satisfeito, malgrado saiba que o homem é fraco, é mau, o pune por suas faltas, quando, Nome sobre todo nome, deveria interferir e apartar do gênero humano a sanha bestial. Será por isso que males como pandemias grassam sobre a Terra de tempos em tempos?
Como não há mal que sempre dure, o homem cria beleza, mesmo caminhando sobre a morte. Prova disso é mais uma lista, essa com 12 livros, cujo lançamento se deu em 2021, no auge da peste, escolhidos pelos editores da Bula, como “Escute as Feras” (Editora 34), de Nastassja Martin, sobre uma antropóloga que se vê forçada a descer de seu pedestal de sabedoria e encarar uma ameaça nada afeta a elucubrações filosóficas, e “Trapaça no Harlem” (Harpercollins Brasil), de Colson Whitehead, que autor faz um estudo quase arqueológico de um bairro nova-iorquino que quase não existe mais. No caso de “O Lobo e Outros Contos” (Todavia), a coletânea reúne histórias curtas do literato germânico Hermann Hesse publicadas ao longo do século 20, mas que só agora vieram à luz no Brasil.
O franco-venezuelano Miguel Bonnefoy se revela um contador de histórias excelente, conforme se atesta em “Herança”, pequena saga que se derrama num realismo mágico inventivo e sedutor ao longo de exíguas 192 páginas. Lançada no Brasil pela Vestígio, com tradução de Arnaldo Bloch, a trama segue os Lonsonier, família que deixa a França e se estabelece no Chile. A partir de então, são narradas as impressões desses forasteiros, que ao longo de um século, entre 1873 e 1973, tentam fincar raízes numa terra estranha e, com alguma sorte, definir sua verdadeira identidade. O romance de Bonnefoy registra a barbárie da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e se alonga até a Segunda Grande Guerra (1939-1945), quando os exércitos contam com muito mais tecnologia, um avanço macabro que parece ter gosto por promover a morte e viver dela, chegando à eleição de Salvador Allende (1908-1973), logo deposto pelo ditador Augusto Pinochet (1915-2006), uma era de dezessete anos de trevas para os chilenos.
Livro de fragmentos, de passagens que a autora, por alguma razão, considera importantes, “Correntes” explora o tudo e o nada para Olga Tokarczuk, lugar em que sempre esteve muito à vontade e no qual pôde desenvolver mais livremente os temas que resultam desse primeiro contato com o desconhecido em si mesma, como quando, em poucos contos, a autora persegue histórias familiares relacionadas a cenários específicos. Esses episódios poderiam se alongar sobre a metafísica da vida, o drama da existência, a solidão universal, mas contentam-se em observar cada homem como uma criatura dotada de razão e sentimento, livre para viver como quiser e driblar os determinismos da natureza humana.
Numa ficção científica de fundo feminista, a escritora e psicanalista belga Jacqueline Harpman dá preciosas lições sobre a sociedade contemporânea ao se desdobrar sobre a história de 40 mulheres, aprisionadas num calabouço sob o olhar atento de vigilantes que nunca dizem uma palavra. Repentinamente, uma sirene é acionada, os guardas fogem e a cela se abre. Entre as cativas, está uma menina cujo nome não se conhece, que parece nunca ter visto a luz do mundo. É justamente ela quem lidera o grupo para fora da prisão, chegando a um lugar hostil e do qual nunca tinham ouvido falar. Tendo apenas umas às outras, essas 40 almas misteriosas e infelizes terão de inventar outra vida para si, encarando os perigos de ser livre de verdade.
Volker Michels, conferencista e editor alemão responsável por reedições verdadeiramente antológicas da obra do romancista Hermann Hesse (1877-1962), Prêmio Nobel de Literatura de 1946, assina mais um trabalho, com os melhores contos do ficcionista, seu patrício. Reunidas cronologicamente, as narrativas compreendem a produção de Hesse entre 1903 e 1948, período que perpassa a fase madura do autor e a inscrição de seu nome como um dos maiores artistas do século 20. As dicotomias do homem, os enfrentamentos intestinos entre corpo e alma, a liberdade e seu preço, se encontram em cada história. Ao transportar o leitor para um mundo onírico, em que o sonho se mistura ao sentimento, os dois por seu turno se amalgamando à filosofia, a coleção — publicada por uma editora brasileira pela primeira vez — já nasceu clássica.
A antropóloga francesa Nastassja Martin se notabilizou por seus estudos acerca da população do Grande Norte subártico. Em viagem à Rússia, em busca de famílias even — povo que preferiu se afastar da civilização pós-soviética e voltar às florestas siberianas —, Martin se defronta com uma rotina de trabalho pautada pelo rigor de suas pesquisas etnográficas, embora nem tudo possa estar sempre sob o controle da ciência. Um encontro completamente inusitado (e aterrador) a obriga a sentir as dores da natureza, momento em que tece uma reflexão perturbadora sobre o homem, a vida selvagem, as fronteiras geofísicas e políticas, o tempo, a mitologia e a história em meio a tudo isso.
A arquiteta Júlia, personagem central do livro da autora Tatiana Salem Levy, o recém-lançado “Vista Chinesa”, tece um painel acerca da a pressão social que envolve a mulher, que deve ser uma profissional melhor que os homens, nunca fracasse, nunca sinta medo, nunca se sinta ultrajada e nunca se envergonhe, mesmo se vítima de uma das mais abjetas violências de que alguém pode ser vítima. Ao resolver falar do estupro da amiga Joana Jabace, diretora de TV da Rede Globo, durante uma corrida próximo à Vista Chinesa, um dos lugares mais procurados por turistas no Rio, a romancista desvela um dos maiores tabus da sociedade contemporânea até hoje, para o qual jamais surgem soluções eficientes.
Por meio de uma escrita muito particular, quase sem figuras de linguagem ou recursos narrativos mais sofisticados, a escritora e professora francesa Annie Ernaux encontrou seu mundo. Dispensando artifícios num texto preciso, “O Lugar” é capaz de comover o leitor ao descrever a dor da perda do pai, o sentimento mais íntimo e rascante de sua vida. Em sequências curtas e interrelacionadas, Ernaux relembra a jornada do homem do campo que vira operário e, depois de anos de trabalho duro, abre um bar-mercearia num vilarejo normando. Ao falar de suas origens, a autora traça um dos tantos quadros sociais da França, sacudindo a poeira da produção literária no país e revelando personagens que só apareciam sob à luz do grotesco.
Petardo de cinismo contra a hipocrisia de uma sociedade que nunca enxergou o martírio óbvio de ser mãe — até que ela própria se vê estranhamente capturada pelo instinto maternal de uma forma nada comum —, em “A Pediatra”, de Andréa Del Fuego, lançado pela Companhia das Letras, Cecília é tudo o que não espera de um médico na sua especialidade: detesta crianças, não se compadece da angústia de pais e mães (principalmente mães) que se desesperam se o pequerrucho não faz um cocô bonito ou se bebe xampu e acha que parto tem de ser com hora marcada. Andréa Del Fuego, 46 anos, codinome de Andréa Fátima dos Santos, traça em “A Pediatra” o perfil de tantas mulheres e homens de branco, que se casam com a medicina por mera conveniência, e em algum momento são obrigados a lidar com a frustração, com o ofício e com a própria vida.
Dentre os 13 livros de que mais gostou em 2021, o ex-presidente americano Barack Obama mencionou o romance “Trapaça no Harlem”, de Colson Whitehead, vencedor de dois Pulitzer de ficção há pouco tempo. Dissecando o Harlem dos anos 1960, muito diferente do de hoje, revitalizado graças à procura por moradia de brancos jovens de classe média, Whitehead narra a trajetória de Ray Carney no bairro, subdistrito de Manhattan. Palco de revoluções socioculturais de importância fulcral na história dos Estados Unidos, que marcaram a cultura e a sociedade americanas com discussões sobre racismo e segregação étnica, o Harlem é visto pelo autor, um afro-americano de 52 anos de idade, à luz do que era há mais de meio século — e continua a ser, em alguma medida —: um divertido antro de malandros, prostitutas, cafetões, traficantes e intelectuais malditos, todos convivendo na mais perfeita harmonia.
Diferentemente dos outros livros de Pedro Mairal, “A Uruguaia” e “Uma Noite com Sabrina Love”, o motivo do deslocamento — uma constante em sua obra — em “Salvatierra” se refere não ao encontro com uma mulher, mas, sim, à morte do pintor mudo Juan Salvatierra, autor de um único quadro ao longo de seis décadas, dividido em metros de tela. Essas imagens, separadas de acordo com o ano em que foram pintadas, são registros de momentos de sua vida, desde criança até a velhice, tudo misturado a cenas da natureza, fisionomias de parentes e amigos e sua Barrancales natal. Uma alegoria de Mairal sobre a efemeridade da vida, que passa e só deixa um quadro, ainda que gigantesco, como lembrança.
Duílio, Rangel, Hélio Pires e Tide se envolveram num crime quando adolescentes e ainda hoje se sentem ameaçados pela mínima possibilidade de que tudo venha à tona, meio século depois. A inconsequência da juventude continua a reverberar entre eles transcorridos cinquenta anos, e eles se veem obrigados a reviver os tempos de bebedeira no Parque da Cidade e passeios despretensiosos ao longo da W3 Sul. Em “Os Planos”, Carlos Marcelo, ex-editor-chefe do jornal “Correio Braziliense”, hoje no mesmo cargo no “Estado de Minas”, põe lado a lado memórias afetivas de quatro sessentões e os meandros da corrupção nacional que infesta a capital da República desde sempre, fazendo alusões interessantes a empreitadas contemporâneas, de todo inovadoras no combate à devassidão no trato com o patrimônio nacional, como a Operação Lava-Jato, que mobilizou a Justiça, empolgou a opinião pública e apavorou políticos — por essa razão já providencialmente desmontada. O romance de Carlos Marcelo mostra que nunca esteve tão vívida a atmosfera do faroeste caboclo enunciado por Renato Russo (1960-1996), mencionado por alto na trama, como o “Renatinho da Cultura (Inglesa)”, por ter dado aulas de inglês na instituição.
Em meio aos conflitos inerentes à vida de um menino que se descobre menina, Camila Sosa Villada encontra seu porto seguro na literatura e faz da escrita uma forma de resistir. Pouco depois de abandonar Cristian, sua identidade masculina, Camila deixa também a pequena La Falda, na província argentina de Córdoba, e ruma para a capital da província. Na cidade grande, passou a estudar Comunicação Social e Teatro pela manhã e ia se prostituir no Parque Sarmiento à noite. Foi de sua vivência no submundo que saiu “O Parque das Irmãs Magníficas”, relato confessional, ainda que meio místico, em que se dá vida, com a ajuda do realismo mágico a tipos como Tia Encarna, chefe das travestis que adota um bebê. Depois de premiados na Feira do livro de Guadalajara, no México, o romance e sua autora se tornaram conhecidos em outros países hispânicos.